À boca do Cais da Torna
Um boqueirão de má fama,
De peixe podre é o pivete
Feito de escamas o tapete
E de imundícies a lama,
Por lá pululam criaturas
Sombras do nosso passado,
Escalando o peixe e a vida
Como se fossem dar guarida
Ao negrume do seu fado,
Um vai e vem nas vielas
Sombras à luz do lampião,
Gingando ao marulhar
Do rio sempre a malhar
Na muralha do pontão,
Curta é a noite e a água
Única fonte de esperança,
Chama os que se tentam
À madrugada e enfrentam
Os passos da velha dança,
Cada dia é mesmo esse
O mar não é sempre igual,
Muitas vezes no Boqueirão
Todos ralham sem razão
Pois a fome é sempre igual,
Paisagens de outra vida
À luz da candeia gravadas,
Talvez memórias antigas
De canseiras e fadigas
Lá do fundo recordadas,
A muralha e o escuro do rio
A noite que alberga a Lua,
Tudo isso me faz evocar
Um outrora a relembrar
No vislumbre duma rua,
Basta isso e já se sabe
Dos suores e cobertores,
Do sono que os repara
E das noites cara a cara
No delírio dos amores,
Vivendo à conta do mar
A morte anda ali tão perto,
Com a miséria à babugem
Já não tugem nem mugem
Se tiverem comer certo,
Saem os barcos à pesca
Longe ainda vem o dia,
No Boqueirão da Torna
Sofre-se mais uma jorna
Com o amanhã na utopia,
Lá foram e lá vêem
Trazendo a consolação,
Peixe que o rio doou
Em troca do que ficou
Gravado na recordação,
Cada dia é uma luta
Que no mar de desenrola,
Pingos de suor ao mar
São rituais de retornar
Ecos da mesma escola,
Velho conhecimento
Pela fome acicatado,
Por gerações passado
Em secreto postulado
Num rigoroso regimento,
A tarefa de ir vivendo
Sem promessa de viver
É da mais dura escola
Não requisita esmola
Enfrenta o que há-de ser.
8-10-2012
Sem comentários:
Enviar um comentário