quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Fim de Semana em Lisboa

É fim-de-semana
O tempo pode mudar
Pode chover e trovejar
Ainda bem
Quando se acorda há uma sensação de liberdade esquecida
Apetecida, desejada
Finalmente conseguida,

Lá, junto ao rio
Ficou o lugar dos dias de semana
Inerte, fechado
Como que temporariamente esquecido
Mas constantemente lembrado
Num lamento calado
Como um fado sentido
Mas recusado...

É fim-de-semana
Passa tudo a correr
O tempo
A vida
Numa relatividade constante
Ameaçadora
Frustrante...

A liberdade de passear nas ruas surge como mais uma benesse fiscal que pode ser cortada
Caminha-se como que desbravando território desconhecido, andando numa cidade conhecida que não é mais nossa
O olhar abarca os bairros tentando extrair a essência que entretanto foi usurpada por anúncios gigantescos
Que avassalam os espaços abertos, as mentes, os corações e ocupam os olhos incautos 
Numa imposição obscena de pseudo-necessidades materiais, e alcançam tudo o que possam tingir, sabe-se lá com que tintas, em pinceladas supérfluas que se multiplicam
Como os pombos que se vão multiplicando
Alimentados pelos loucos que vão passando
Num presente insano que busca sonhos e ilusões
Como que perdido num deserto de actualidades ocas
Loucas...

É fim-de-semana
Nas gavetas da memória dos fins-de-semana
Agita-se a lembrança
Evoca-se a semelhança
Mas a semelhança é tudo o que existe nessa memória
Estes novos fins-de-semana não têm história,
São encaixados uns nos outros como elos de uma corrente, besuntados com o óleo da correria veloz, do tunning temporal da cidade em corridas perigosas, comercialmente desastrosas -
São todos iguais
Apressados mas normais
Fúteis mas actuais
Recheados de centros comerciais em outdoors e outlets numa acne purulenta e teimosa
Aqui e além, e depois mais ali e acolá
E depois sabe-se lá onde até que a cidade perca a sua imagem
Até que deixe de ser uma cidade e passe a ser uma coisa indefinida
Comercialmente criada
Intelectualmente destruída
Da verdade despojada...

Indelevelmente marcada, a velha cidade busca refúgio nas noites vadias,
Nos nevoeiros nocturnos em ruelas desertas e antigas, que vibram de passado e matizes apagados
Nas azinhagas esquecidas pelo alcatrão que a cal e areia teimam em debruar numa franja de antiguidade pintada de musgo, como uma janela que se abre na memória perdida
Nas hortas pintadas de verde que atapetam vales disfarçados de avenidas e vias rápidas, numa miscelânea de feira popular
Nos silêncios que a cada esquina evocam as ideias que aqui nasceram, acalentadas pelo futuro abrigado num casebre de adobe e um catre de madeira
Numa manhã de pesca lacustre esquecida no tempo que um pintor esboça numa inspiração inusitada
No fim-de-semana encontram-se traços a cada curva, numas escadinhas perdidas, num alpendre que se insinua como uma recordação de outras vidas, num telhado florido que o jardineiro tempo cuidou com desvelo…e...

Alheio a tudo, o Tejo acaricia a cidade
Num vai e vem de marés
Afaga-lhe as faces
Beija-lhe os pés
Trabalha sempre a descansar
Numa calma fluida a marulhar
E a sua cidade é um campo aberto
Onde vai lavando as ruas e vielas
Os becos e as travessas
Com o cheiro a maresia
Numa alucinação de marinhagem e velame
Que fervilha invisível nas docas e cais
Vazios, numa nostalgia de azáfama e glória perdida

Fins-de-semana normais
Não têm história

16-2-2006

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