domingo, 27 de outubro de 2019

Catástrofe 2000

Corria o ano de 2000 quando dois acontecimentos concomitantes abalaram o país e fizeram estremecer os alicerces da nacionalidade.

Os treinadores das equipas de futebol do Benfica e do Sporting abandonaram os lugares, um mandado embora, qual cão vadio e o outro saindo a seu pedido, impedindo as equipas de jogar.

A opinião pública, dominada por forças incontroláveis, abanou violentamente.

A protecção civil com os seus escassos meios viu-se a braços com uma situação de emergência para a qual não estava preparada.

O exército, sempre preparado para as mais diversas eventualidades viu-se incapaz de intervir com eficácia, face à hecatombe que se abateu sobre a nação.

Nas ruas, as pessoas choravam, agarradas umas às outras, já esquecidas de velhas questiúnculas, irmanadas no desespero e os cães latiam e uivavam, como é costume nestes casos, emprestando ao ambiente os seus lúgubres apelos.

Nos empregos, os funcionários desmotivados, clamavam pela necessidade de estar juntos às suas famílias, naquela altura difícil e corriam para as suas casas, onde os esperavam as mulheres e os filhos, lavados em lágrimas.

Nos meios de comunicação social, os jornalistas, até então sempre ávidos de notícias frescas, juntaram-se à multidão irada, esquecendo os noticiários, deixando a população na ignorância do que se passava e agravando ainda mais o caos que se tinha instalado.

Com os transportes públicos parados, o abastecimento de água cortado e o insuficiente fornecimento de energia eléctrica, a população experimentou a dureza do clima e a abstinência de futebol.

Nas sedes dos clubes, os dirigentes em estado de choque, estavam incapazes de liderar a horda e a anarquia vigorava qual cavaleiro do apocalipse.

Nunca tal se tinha visto.

Era na época do Natal, mas as pessoas tinham-se esquecido do Pai Natal e do Menino Jesus, da solidariedade e do amor, trocados agora pela incerteza do amanhã e pela possibilidade de interrupção do campeonato.

O governo, assustado pelo ambiente que se vivia nas cidades e pela falta de biombo informativo, declarou o estado de sítio e com ele o recolher obrigatório, que o caracteriza, na tentativa de evitar o vandalismo e o saque, que sempre ocorrem nestas alturas, mas não surtiu efeito pois a maioria dos soldados e oficiais sofria também o impacto dos acontecimentos do momento e juntaram-se à multidão enraivecida que se reunira, aos milhares, nas sedes dos clubes, exigindo solução para aquela gravosa situação que afligia o país.

Numa tentativa desesperada, o governo pediu aos políticos de todos os partidos que tomassem posição e salvaguardassem as instituições, legislando apressadamente uns quantos decretos que possibilitassem ao executivo enfrentar a situação com meios extraordinários, mas também os dirigentes e quadros partidários aderiram à chusma que gritava a plenos pulmões na Luz e em Alvalade.

Nos dias seguintes a situação, longe de acalmar agudizou-se à medida que os boatos corriam céleres; o campeonato ia acabar, os jornais desportivos iam parar as tiragens, a televisão ia deixar de transmitir jogos e programas de grande informação desportiva, enfim, o caos.

As manifestações transformaram-se rapidamente em grandes tumultos que avassalavam as cidades, vilas e aldeias, sem que as forças da ordem conseguissem impor-se, já que o grosso dos seus elementos padecia também da mesma fúria que dominava a multidão.

Tudo parecia convergir para um confronto atroz.

Foi a chuva, que começara entretanto a cair, com a sua democracia molhada, que começou a refrescar os ânimos.

Chovia a cântaros, a meteorologia previu, apressadamente, tempestades e ciclones.

Lentamente, as multidões dispersaram, de volta aos seus empregos e afazeres, os soldados e polícias regressaram aos quartéis, os jornalistas voltaram a fazer noticiários, onde não faltavam os tradicionais biombos informativos, o que muito agradou aos políticos.

Gradualmente, as pessoas começaram a prestar a atenção a outras coisas, nomeadamente aos concursos televisivos e às telenovelas, preenchendo assim como temas mais culturais e sadios, o vazio abissal criado pelo colapso futebolístico.

2000

Sem comentários:

Enviar um comentário